Digamos que o tempo não foi o seu aliado pois o corpo era
uma coleção interminável de cicatrizes. Era calejado pela vida e os poucos
cabelos que lhe restavam eram brancos. No meio cabeça uma marca imensa e três
fios de cabelos puxados para o lado tentando disfarçar mais um sinal de
desastre.
De carro se acidentara dezenas de vezes, mas nunca se ferira
com gravidade, porém quando saía de sua casa os amigos solicitavam: avise, se
você sair, nós ficaremos em casa.
Em comum com os tempos de juventude, além do azar, uma
paixão desenfreada. Isso, se você tiver uma memória razoável deve recordar da
moça que foi atingida por um cesto de pétalas de rosas. Pois bem, ela é o seu
grande amor, e para a sua felicidade, amor correspondido.
No dia que casaram o padre tropicou na sineta e caiu sobre o
coroinha. A aliança não era grande suficiente. E, devido a emoção, acabou
pisando no vestido de noiva e deixando quase todo corpo da jovem esposa a
mostra. Mas isso já é parte do passado. Agora que estão envelhecidos aprenderam
a conviver com os desastres do dia-a-dia. Porém, por aquela ninguém esperava,
ah, ninguém.
Deitados na cama em seu novíssimo e confortável colchão
resolveram fazer uma inauguração. Sobre o criado mudo um abajur e um copo onde
repousava tranquilamente a dentadura. Estavam na fase de carícias e esqueceram
de se precaver, afinal, fazia poucos meses que ele havia trocados os pinos que
tinha na perna esquerda (quebrara o fêmur quando ficou trancado na porta
giratória do banco). A emoção era tanta em inaugurar com sua amada o caríssimo
colchão de molas que tudo ficou no esquecimento. Aquecera a libido e ambas já
arfavam de prazer, os toques eram cada vem mais calientes e ele lembrou-se de
um detalhe que ela adorava. Foi ao banheiro, correndo, e quando de lá retornou
com um creme caseiro escorregou no tapetinho, tentou se aparar no criado mudo,
queimou a mão ao tocar a lâmpada incandescente e, pra piorar ainda mais,
quebrou o copo, derrubando a dentadura. Sentou na cama desolado, afinal todo
tesão terminara, porém nada está tão ruim
que não possa piorar. Ela, impregnada pela onda de azar, levantou para
buscar uma pomadinha para a queimadura. Quando voltava para o quarto,
escorregou na poça de água, pisou na dentadura e caiu sobre o marido. O tesão
estava aflorando e eles trataram de inaugurar o novo colchão, sem se importar
com a queimadura e nem com a dentadura. Durante trinta minutos tiveram
prazeres, como na juventude, inaugurando o colchão em grande estilo, porém, na
hora de levantar ele percebeu algo errado: a perna estava trancada no colchão
como que atada. Uma das molas havia estourado, afinal, eram mais de duzentos
quilos de prazer gemendo sobre a cama, fazendo com que o colchão arrebentasse e
a mola enroscasse na perna. Lá foi ela para o telefone chamando pelos
bombeiros. A cena encontrada era das mais inusitadas: um homem velho, gordo,
nu, ainda excitado e com a perna emaranhada nas molas do colchão. Ele foi
retirado dali e colocado em uma maca, e quando o bombeiro chefe saia puxando o
veículo de socorro ele, também ele, caiu, pisando em alguns dentes que se
espalhavam pelo chão.
Os dois foram para o hospital e, enquanto isso, a mulher
chamou o dono da loja de colchões, que não quis acreditar no que ouviu. Aceitou
trocar o produto e levou para a casa um colchão d’agua. Certamente ele não
conhecia a onda de azar e tudo que poderia ocorrer dentro daquele quarto. Quem
viver, verá!